Amizade, diversão e aventura: uma receita que soa bem para qualquer jovem. Esses e outros elementos estão contidos no escotismo, movimento educativo não formal existente há mais de cem anos, que hoje concentra mais de 80 mil participantes no Brasil entre 40 milhões espalhados em 216 países pelo mundo. Ainda assim, poucas pessoas conhecem sua verdadeira proposta. Com o objetivo de estimular reflexões sob essa perspectiva, aconteceu em São Paulo, entre os dias 5 e 7 de setembro, o I Congresso Brasileiro de Educação Escoteira, promovido pela associação dos Escoteiros do Brasil.
O evento foi um convite tanto ao público interno quanto para a comunidade acadêmica, totalizando cerca de 150 pessoas. Estiveram presentes escoteiros de Portugal, Espanha, Argentina, Uruguai e Paraguai, além de membros da Federação Bandeirante do Brasil. Realizado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each – USP), o encontro proporcionou palestras de especialistas internacionais e seminários com voluntários e profissionais da instituição. Também houve espaço para que pesquisadores pudessem apresentar suas produções e trabalhos.
De acordo com o documento institucional Princípio, Orientações e Regras, essa pedagogia específica se baseia em alguns pilares, como o método escoteiro e o programa educativo. O primeiro se divide em cinco pontos que definem as estratégias de mediação dos responsáveis pela prática direta. São eles: a aceitação de um código de valores, o aprender fazendo, a vida em equipe, as atividades progressivas, atraentes e variadas, e o desenvolvimento pessoal com orientação individual. Já o segundo caracteriza os objetivos pedagógicos que incluem o desenvolvimento de crianças, jovens e adolescentes (entre os seis anos e meio e os 21) nas áreas física, afetiva, de caráter, espiritual, intelectual e social.
Dentre as presenças mais importantes, esteve a do Presidente do Comitê Escoteiro Mundial, João Armando Gonçalves. Licenciado e mestre em engenharia civil, é doutorando em Planejamento do Território e professor adjunto convidado do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. O português, que estava em sua segunda visita ao Brasil, começou sua trajetória no movimento em 1976. O tema de sua palestra foi O Escotismo como ambiente de aprendizagem, com o qual procurou abordar a flexibilidade desse meio e os desafios para adaptação a um mundo cada vez mais dinâmico.
No fim do evento, ele se mostrou satisfeito, porém ciente de que ainda há muito trabalho a fazer na consolidação da relevância do escotismo. “O que nós viemos fazendo há cem anos foi de fato contribuir com o desenvolvimento de jovens e cidadãos” diz, contando que nesse período mais de 500 milhões já foram participantes do movimento. Para ele, é natural que seja necessário se moldar à realidade, porém sem perder de vista o propósito inicial: “Penso que ficou bem claro essa ansiedade de sair da zona de conforto que é ter um público homogêneo hoje em dia e tentar alcançar os bairros mais desfavorecidos, que têm menos condições. Ganhar essa consciência de que é preciso atualizar a proposta educativa, modificar um pouco das práticas e, sobretudo, chegar mais longe, porque faz parte da nossa missão”.
Na mesma linha de pensamento esteve outro convidado, Eduard Vallory, que palestrou sobre O propósito do escotismo e seu papel junto à educação formal. Segundo ele, o ensino passa por uma reformulação muito forte a nível mundial, na qual as fronteiras entre as iniciativas formais e não formais se diluem. “Isso quer dizer que a aprendizagem deve focar muito mais em competências e empoderar os jovens. O papel dos educadores é mais de acompanhar esse processo do que de fornecer o acesso a conteúdos, algo que mudou muito com a internet”, diz.
Para ele, é nesse contexto que o escotismo entra com sua capacidade de despertar a necessidade intrínseca das crianças e jovens de aprender por meio das experiências e da ação. Além de doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Pompeu Fabra, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Chicago e licenciado em Filosofia pela Universidade de Barcelona, Vallory é escoteiro desde os oito anos – o que influenciou em seu doutorado, no qual estudou o movimento sob uma perspectiva global. Hoje, ele preside o Centro Unesco da Catalunha.
Thaís Lacerda, de 21 anos e escoteira há 15, é estudante de Relações Internacionais da PUC do Rio de Janeiro. Ela escreveu para a faculdade um artigo sobre escotismo, Islã e gênero, no qual entrevistou duas muçulmanas pertencentes ao movimento na Argélia e na Turquia e um mulçumano no Egito. Sua intenção era problematizar o preconceito que envolve essas culturas e também observar a aplicação do método e do programa nessas regiões, pontuando especialmente a questão da mulher.
Durante o congresso, ela teve a chance de apresentar seu trabalho e conta que inicialmente não sabia como fazê-lo para um público familiar ao tema. “Na faculdade, muito da minha apresentação foi sobre algo que aqui todo mundo sabe o que é”, diz. No entanto, ela percebeu que esse era o momento de fazer a ponte com seu universo acadêmico: “vi a importância de mostrar o meu campo de estudo, que fala da relação com o outro e da necessidade de evitar o sofrimento humano. Quis trazer isso para dentro, porque nós somos parte da sociedade”. Ela se diz feliz e impressionada com os resultados do congresso “pelo quanto ele contribuiu para iniciar reflexões e operar mudanças”.
Fonte: Setor3